BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – O chefe da inteligência da Receita Federal no início da gestão Jair Bolsonaro acessou e copiou dados fiscais sigilosos do coordenador das investigações sobre o suposto esquema das “rachadinhas” (o então procurador-geral de Justiça do Rio Eduardo Gussem) e de dois políticos que haviam rompido com a família presidencial, o empresário Paulo Marinho e o ex-ministro Gustavo Bebianno.
Documentos internos oficiais do governo obtidos pela Folha de S.Paulo e depoimento de pessoas diretamente relacionadas ao caso mostram que Ricardo Pereira Feitosa, então coordenador-geral de Pesquisa e Investigação da Receita, acessou de forma imotivada os dados nos dias 10, 16 e 18 de julho de 2019, primeiro ano da gestão Bolsonaro (2019-2022).
Não havia nenhuma investigação formal em curso na Receita contra essas três pessoas, o que resultou na posterior abertura de investigação interna e processo disciplinar contra Feitosa.
Em nota de sua defesa que enviou à reportagem, Feitosa não respondeu diretamente às perguntas. Disse apenas que não cometeu violação, que não vazou dados sigilosos e que sempre atuou no estrito cumprimento do dever legal.
O procurador Eduardo Gussem chefiou o Ministério Público do estado do Rio de janeiro de 2017 a janeiro de 2021, período em que o órgão recebeu, durante investigação, relatório produzido pelo Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) indicando movimentação financeira atípica de Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio.
Marinho e Bebbiano, que se tornaram amigos próximos, participaram do comando da campanha de Bolsonaro em 2018.
O primeiro cedeu sua mansão no Jardim Botânico do Rio para ser quartel-general e estúdio de gravações da campanha, tendo também integrado e sido eleito primeiro suplente de senador na chapa de Flávio Bolsonaro.
O segundo coordenou a campanha presidencial do capitão, como ele gostava de chamar Bolsonaro, e, depois, virou ministro da Secretaria-Geral da Presidência.
Ambos, porém, romperam ou se distanciaram dos Bolsonaro logo no início da gestão. Em meados de 2019 os dois já estavam alinhados ao então governador de São Paulo João Doria (PSDB) -que também já percorria a rota que o tornar um dos ex-aliados mais combatidos pelo presidente e seu entorno.
Os documentos e informações obtidos pela Folha mostram que o chefe da inteligência da Receita acessou e extraiu cópia das declarações completas de Imposto de Renda do procurador Eduardo Gussem relativas a sete anos -2013 a 2019.
O Ministério Público do Rio denunciou Flávio e Queiroz em outubro de 2020, mas o caso teve reviravoltas favoráveis ao senador, com o STJ (Superior Tribunal de Justiça) anulando em 2021 todas as decisões tomadas pela primeira instância da Justiça.
De Bebianno também foram acessados e extraídos, entre outros, os dados do IR relativos a sete anos, de 2013 a 2019.
Bebianno foi o primeiro ministro demitido do governo Bolsonaro, em fevereiro de 2019, ao se tornar o centro de uma crise instalada no Palácio do Planalto depois que a Folha revelou a existência de um esquema de candidaturas laranjas do PSL para desviar verba pública eleitoral.
Desde a demissão, passou a ser uma voz crítica a Bolsonaro e à interferência de seus filhos. Ele morreu em março de 2020, vítima de infarto, de acordo com a família.
Já Marinho teve os IRs de 2008 a 2019 acessados (a exceção de 2012) e copiados. Sua mulher, Adriana, os de 2010 a 2013.
O então chefe da inteligência da Receita vasculhou dados dos desafetos de Bolsonaro em outros três sistemas sigilosos da Receita, um que reúne ativos e operações financeiras de especial interesse do Fisco, um de comércio exterior e uma plataforma integrada alimentada por 29 bases de dados distintas.
No sistema de comércio exterior, houve acesso também à empresa ABM Consultoria, que tem a mulher de Marinho como sócia-administradora.
Marinho percorreu um longo caminho de distanciamento e atrito com a família Bolsonaro -em maio de 2020, por exemplo, afirmou que a Polícia Federal antecipou a Flávio Bolsonaro que Queiroz seria alvo de operação.
No dia da vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sobre Bolsonaro no segundo turno das eleições, 30 de outubro, ele publicou uma foto ao lado de Bebianno e a seguinte inscrição: “Acabou, Gustavo. Pagamos nossa penitência! Descanse em paz, meu irmão”.
Ricardo Feitosa trabalhava no escritório da Receita em Cuiabá antes de assumir o cargo de chefe nacional da inteligência do órgão, em 21 de maio de 2019.
Em 23 de setembro daquele mesmo ano, ou seja, com apenas quatro meses na função, foi exonerado do cargo e transferido para a Alfândega do Aeroporto Internacional de Brasília.
De acordo com o portal da Transparência do governo, atualmente é auditor-fiscal da administração aduaneira da Receita em Cuiabá.
O caso da devassa nos dados dos desafetos de Bolsonaro começou a ser investigado pela Receita em um procedimento preliminar, em janeiro de 2020.
Em uma segunda etapa, foi instaurada uma sindicância investigativa em março do mesmo ano, que concluiu pela abertura de um PAD (Processo Administrativo Disciplinar).
O PAD é a fase mais gravosa de procedimentos administrativos no funcionalismo, podendo resultar em arquivamento ou punição, com penas que vão de advertência a demissão do serviço público.
O PAD transcorreu os anos de 2020, 2021 e 2022 e, atualmente, de acordo com pessoas a par da situação, está na mesa do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, com recomendação da demissão de Feitosa do serviço público.
Em 2020, a defesa de Flávio Bolsonaro mobilizou vários órgãos do governo do pai justamente sob a afirmação de que havia um esquema de acesso ilegal de seus dados fiscais, o que teria embasado a produção do Relatório de Inteligência Financeira do Coaf que deflagrou o caso das “rachadinhas”.
A Receita chegou a solicitar uma devassa em seus sistemas para tentar identificar acessos ilegais a dados fiscais do presidente, de seus três filhos políticos, de suas duas ex-mulheres e da primeira-dama, Michelle.
Como revelou a Folha, de outubro de 2020 a fevereiro de 2021 o órgão também mobilizou por quatro meses uma equipe de cinco servidores para apurar a acusação feita por Flávio. A conclusão foi a de que não havia indícios de atos ilegais de auditores contra o clã Bolsonaro.
De acordo com a Receita, servidores públicos que violam o sigilo fiscal de contribuintes estão sujeitos a penalidades de natureza criminal, administrativa e civil, como demissão (administrativa) e processo por danos materiais e morais (civil).
OUTRO LADO
Auditor diz que não vazou dados sigilos Ricardo Pereira Feitosa não respondeu diretamente às perguntas sobre se agiu sozinho ou por ordem de alguém, sobre por que efetuou os acessos sem que houvesse motivação formal para tanto e qual destinação deu aos dados sigilosos que coletou do procurador, de Bebianno, de Marinho e de sua mulher.
Em nota de sua defesa que encaminhou à reportagem, ele disse que exerceu diversos cargos de chefia em sua vida “sempre com seriedade, zelo, atenção ao interesse público e cumprimento estrito dos deveres legais, trabalhando no combate à prática de ilícitos tributários e exercendo seu poder-dever de atuar na inteligência fiscal”, em especial quando chefiou a inteligência do Fisco.
“Nesse sentido, o referido servidor sempre exerceu seus deveres legais dentro de suas atribuições funcionais de auditor fiscal de maneira impessoal, em prol do interesse público. Não promoveu a violação de dados fiscais e tributários e nenhuma forma de vazamento ou divulgação de informações, tendo todos os dados de inteligência mantidos sob a proteção do sigilo legal.”
A Receita não se manifestou, afirmando que “temas relacionados à área correcional correm sob sigilo, nos termos da legislação pertinente”. Questionada novamente, o órgão não informou a que legislação e a que termos se referia, especificamente.
Secretário da Receita Federal quando Feitosa exercia a coordenação de inteligência, Marcos Cintra afirmou que não teve conhecimento do caso e que também desconhece os procedimentos operacionais que Feitosa usava na área de investigação.